" A medida de uma alma é a dimensão do seu desejo"
(Gustave Flaubert)
(Gustave Flaubert)
Estava uma noite quente de verão e ainda estávamos longe de casa. Não tínhamos pachorra para mais uns quilómetros, acrescidos do inevitável serão na cozinha. Trocámos um olhar cúmplice denunciador do desejo de uma velada diferente e decidimos jantar no caminho.
Corria o jantar remançosamente quando, a minha filha, se encantou pelo som do piano cujas teclas dançavam - sob os dedos metódicos e apaixonados - de uma pianista que passeava melodias inesquecíveis pelos corredores daquela unidade hoteleira. Prometi-lhe que, finda a refeição, ficaríamos a assistir ao resto do concerto que decorria no átrio do estabelecimento. E, assim foi.
Quando nos retirávamos, para um passeio nocturno, esbarrei no "desejo" de Mário Rebelo de Sousa. Fantástico! Que saudades tinha daquela tela. Parece ter adivinhado que a minha noite de sonho se faria completa se entre o calor, as estrelas, a música e as mulheres que me acompanhavam… tudo se mesclasse por entre os fios de cor desenhados por entre os trilhos ebúrneos daquele quadro.
Foram várias as conversas com o Mário sobre esta obra que me fascina e normalmente me abstrai do meu entorno devido às emoções, cogitações e inquietações que me desperta. Aliás, a grande maioria delas conhecidas do autor.
A concepção estética do "desejo" eleva-me a uma catarse pessoal sobre a tensão humana face aos valores celebrantes da vida como o amor, o sexo, a maternidade, a nudez, a liberdade de desejar e de amar. Inebria-me o calor do sangue e inquietam-me os olhares reprovadores dos censores da Natureza que a enfeitaram de convenções inibidoras da vida que brota do ventre daquelas que a honram e engrandecem.
É, neste patamar afectivo, que me cruzo com o "desejo" de Mário na medida em que se não carecesse de nada, não desejaria nada. Seria perfeito… um deus. Mas a consciência da finitude e da imperfeição culmina indubitavelmente no desejo que Sartre garantia ser o mais profundo do Homem: "fundamentalmente o desejo de ser Deus".
Olhar para o "desejo" de Mário é não só uma manifestação de admiração pela imensidão estética da beleza humana mas também o nobre reconhecimento da imperfeição e da finitude como condição de realização do Homem. É este encontro com Horácio que - nas suas "Odes" (I, 11.8), se refere à brevidade da vida afirmando que "enquanto falamos, terá fugido ávido o tempo: colhe o instante, sem confiar no amanhã" - liga esta obra à eternidade ideológica sobre o prazer de viver, de amar, de ser livre… afinal um desejo tão humano quanto a existência humana.
A nossa coluna de hoje pretende prestar ao autor desta tela a nossa homenagem pela frontalidade estética da sua obra e demonstrar o nosso orgulho por um conterrâneo que vai emergindo por entre esse emaranhado de criadores que constroem o edifício artístico português. Parabéns Mário por partilhares o teu "desejo" connosco!