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terça-feira, 6 de abril de 2010

In memoriam

Os tempos que hoje correm são de um intenso debate social sobre o ‘excesso’, tentando delimitar o seu âmbito moral e prático. A vida da sociedade está repleta de um excessivo individualismo onde cada um parece querer comercializar-se perante os outros num esforço, não de servir, mas de ser servido. Como afirma Gilles Lipovestky “hoje, há demasiado de tudo… caminhamos para um planeta cada vez mais individualista, tecnológico e comercial”.
No entanto, nem sempre foi assim! O Portugal recente mostrou-nos a força do totalitarismo, do dever de não pensar, do bom senso de não falar, da inteligência de obedecer e da importância de trabalhar sem aspirar a ser alguém. A ditadura portuguesa praticamente remeteu a mobilidade social a um quase plágio da organização da sociedade em castas segundo o paradigma indiano.
O 25 de Abril representou a libertação de um povo amordaçado, cansado de obedecer, incapaz de pensar e inabilitado para o governo da res pública fundado nos princípios democráticos. Tornou-se, desde logo, importante humanizar e normalizar a vida do político que se pretendia um servidor da vontade popular. Um intérprete do povo e um pedagogo da democracia. Ser político significava saber marcar a diferença num novo ciclo da história do país agora convertido aos valores da convivência democrática.
Vila Praia de Âncora, não esteve alheia a todo este processo nacional e, também aqui, se iniciaram todas as metamorfoses estruturais da política local que conduziram à governação democrática dos ancorenses. Como em todas as mudanças sociais, as rupturas arrastam consigo os despojos emocionais dos vencidos e as ambições dos ganhadores.
Escolher um governo para a freguesia e um líder capaz de encarnar os tempos de mudança assemelhava-se difícil. Mas, utilizando as palavras de Giacomo Leopardi, “é curioso ver que quase todos os homens de grande valor têm maneiras simples; e que quase sempre as maneiras simples são tomadas como indício de pouco valor”.
Conheci um homem que se encaixava perfeitamente neste pensamento de Leopardi, o senhor Domingos Luís Verde, a quem ele me deu o privilégio de chamar camarada.
A nossa terra ficou mais pobre no passado dia 23 de Março quando o nosso conterrâneo partiu para o seu descanso eterno. Não se perdeu somente o dirigente (político, associativo, sindicalista) o empresário, o polícia ou um artista… perdeu-se um homem bom, um democrata e uma referência histórica da transição democrática da nossa freguesia.
Domingos Verde, nunca perdeu a capacidade de sonhar e a coragem de acreditar que era possível concretizar a democracia. Ele, um homem que se fez no mar e dele embarcou numa aventura de completo serviço à comunidade que durou uma vida inteira.
Vila Praia de Âncora e as suas gentes devem agora a este homem a homenagem que, em vida, não foram capazes de lhe prestar… talvez por ele ter sido sempre tão simples. Ou… talvez porque todos aqueles que a ele acorriam aflitos, sempre se depararam com um homem calmo que resolvia cada problema como se de um amigo se tratasse. Hoje já não há disto!
Nunca ouvi Domingos Verde reclamar alguma coisa para si, pelo contrário, sempre assisti às suas reivindicações em prol das gentes da sua freguesia, mesmo em prejuízo da sua própria carreira e imagem política.
Espero, brevemente, não ler só que foi aprovado um voto de pesar pelo seu falecimento mas sim que o seu nome será perpetuado na toponímia de Vila Praia de Âncora. Não estou a falar da obrigação de dar o nome de uma rua, ou praça, pelo facto de Domingos Verde ter sido presidente da Junta de Freguesia, mas sim, por ter sido o primeiro eleito democraticamente. Ao lembrar este nosso conterrâneo não estamos só a evocar o homem que foi mas também a história da democracia na nossa freguesia.
Por isso, lanço aqui o repto à Assembleia e Junta de Freguesia, à Assembleia e Câmara Municipal que sigam os princípios éticos da democracia e da justiça histórica imortalizando publicamente a memória de Domingos Verde demonstrando, desta forma, que os democratas são generosos reconhecem os servidores da causa pública… independentemente da sua origem, ideologia, religião ou partido político.
Aos familiares do Sr. Domingos Verde, o mais profundo pesar e solidariedade neste momento de perda e de dor mas também o meu sincero reconhecimento pelo homem público que deixaram servir a nossa terra.